O Vale do Rio Pardo se destaca como um cenário onde a cultura gaúcha se entrelaça com as tradições germânicas, e isso se reflete nos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Esse fenômeno, intensificado nos últimos anos, mostra a importância da herança cultural dos imigrantes alemães na formação da identidade regional.
A colonização alemã na região ocorreu em meados do século 19, quando famílias de origem germânica se estabeleceram em diversas localidades. A imigração trouxe consigo uma série de costumes, tradições e expressões artísticas que, embora tenham permanecido vivos nas comunidades, encontraram um novo espaço também em CTGs.
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Esses centros têm inovado ao incorporar elementos da cultura alemã em suas apresentações. É comum ver danças folclóricas que mesclam a tradicional “chimarrita” com danças típicas alemãs, como o “Schuhplattler”. Além disso, os trajes utilizados em algumas apresentações frequentemente incluem influências alemãs, refletindo tanto a tradição gaúcha quanto a estética germânica.
A música é outro aspecto em que a fusão cultural se torna evidente. Bandas locais têm experimentado mesclar o som do violão e da sanfona gaúcha com instrumentos típicos alemães, como o acordeão e o bandoneon. Essa combinação enriquece as apresentações e atrai um público diversificado, que se sente representado e valorizado.
Os CTGs não são apenas espaços de preservação dos costumes gaúchos, mas também de celebração da pluralidade cultural. Essa nova abordagem contribui para um ambiente de inclusão e respeito às diversas heranças que compõem a identidade da região. Com o fortalecimento dessas práticas, os Centros de Tradições Gaúchas que fazem parte da 5ª Região Tradicionalista (5ª RT) se tornam um exemplo de como a cultura pode se reinventar, preservando suas raízes.
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O historiador e professor no Departamento de Ciências, Humanidades e Educação da Universidade de Santa Cruz (Unisc), Mateus Skolaude, 46 anos, explica que a relação entre os imigrantes alemães e a cultura gaúcha é complexa e multifacetada, com elementos práticos e simbólicos. Ele destaca três aspectos dessa interação.
O primeiro, e um dos mais notáveis, remete ao papel do cavalo na tradição gaúcha e à sua incorporação pelos colonos alemães. “Na Europa, o uso do cavalo era um privilégio aristocrático, enquanto na região meridional do Brasil, o animal de montaria era parte inseparável do homem do campo – o ‘centauro dos pampas’ –, um símbolo da identidade gaúcha”, explica.
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“Assim, adquirir um cavalo de montaria não representava apenas uma necessidade prática, mas também uma forma de ascensão social. Para os imigrantes germânicos, possuir um cavalo era alcançar um status que era impensável em suas regiões de origem, pois conferia dignidade e prestígio social”, afirma.
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O segundo aspecto que o historiador destaca é que os imigrantes alemães se estabeleceram em áreas não ocupadas pelos latifúndios pecuários, como serras e matas, onde fundaram núcleos coloniais baseados na pequena propriedade familiar e na agricultura.
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“Inicialmente afastados das atividades campeiras e pecuárias, os colonos eram frequentemente vistos como socialmente inferiores, especialmente em comparação com os estancieiros da Região Sul e da Fronteira, que dominavam a economia e a política regional”, diz.
Com o advento da República e a decadência gradual do latifúndio pecuarista, a agricultura familiar das áreas coloniais ganhou maior relevância. “Nesse contexto, as figuras do gaúcho e do colono passaram a ser ressignificadas, refletindo a crescente importância dos setores coloniais ligados aos imigrantes na economia sul-rio-grandense e o declínio da hegemonia pecuarista. Essa transformação permitiu que a identidade gaúcha passasse a incorporar também a figura do colono, construindo uma identidade regional comum.”
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Já o terceiro ponto ressaltado é a gastronomia, que também foi um campo fértil para a incorporação de elementos culturais. Segundo Skolaude, colonos alemães adotaram e adaptaram ingredientes da culinária afro-indígena-gaúcha. Produtos como mandioca, batata-doce e amendoim, de origem indígena, passaram a integrar suas dietas. “O consumo de erva-mate, uma prática guarani e símbolo forte da cultura gaúcha, foi rapidamente incorporado pelos alemães”, ressalta.
O historiador observa que a culinária dos afrogaúchos, presente nas regiões da Campanha e da Fronteira, também teve forte influência sobre os imigrantes. O feijão com restos de porco, que deu origem à feijoada, tornou-se parte da alimentação cotidiana dos colonos. “A dobradinha (tripa grossa), tradicionalmente usada na sopa de mocotó pelos escravos, foi adaptada pelos colonos de maneira peculiar, sendo servida em pequenas tiras e preparada à vinagrete. Esse prato ainda hoje é consumido em saladas frias nos restaurantes de Santa Cruz e região.”
Outro momento significativo para essa integração cultural ocorreu durante o centenário da Revolução Farroupilha, em 1935. O historiador recorda que Porto Alegre passou por transformações urbanas intensas, enquanto a celebração do levante farroupilha se tornava um espaço para consolidar uma nova imagem do gaúcho. “Os discursos do governador Flores da Cunha e do prefeito Alberto Bins, de origem alemã, foram fundamentais. Eles equilibraram o passado heroico dos farroupilhas com a contribuição dos imigrantes”, ressalta Mateus Skolaude.
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A nova representação dos “gaúchos de olhos e cabelos claros” surgiu como uma forma de celebrar essa diversidade. “Esses gaúchos eram vistos como perseverantes e empreendedores, contribuindo para o desenvolvimento industrial do Estado”, afirma.
A criação do CTG O Fogão Gaúcho não foi apenas um marco para Taquara, mas um símbolo da evolução da cultura gaúcha em novas direções. Segundo ele, essa desterritorialização mostra que as tradições podem se reinventar e se expandir, incorporando diversas influências e reafirmando identidades.
Em agosto de 1948, a fundação do segundo Centro de Tradições Gaúchas (CTG) no Rio Grande do Sul, denominado O Fogão Gaúcho, na cidade de Taquara, Região Metropolitana de Porto Alegre, marcou um importante capítulo na história do tradicionalismo gaúcho. Conforme o historiador Mateus Skolaude, a iniciativa foi inesperada na região.
O professor ressalta que a criação do CTG em Taquara surpreendeu os tradicionalistas da época. “Enquanto o 35 CTG havia sido fundado em Porto Alegre por jovens ligados à pecuária, a escolha de Taquara, uma cidade de colonização alemã, foi um desvio das expectativas”, explica. Ele destaca que muitos acreditavam que novos centros surgiriam nas regiões de Fronteira ou no Pampa, lugares mais tradicionalmente associados à cultura gaúcha.
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Conforme o historiador, a fundação do CTG em uma área de colonização germânica foi uma forma de os descendentes de imigrantes reafirmarem sua identidade como gaúchos. “Após a Segunda Guerra Mundial, esse movimento era crucial. Eles não queriam ser vistos como ‘estrangeiros’, mas sim como parte integral da cultura gaúcha.”
Skolaude menciona o conceito de desterritorialização, cunhado pelo antropólogo Ruben Oliven, que descreve como as tradições gaúchas começaram a ultrapassar as fronteiras geográficas tradicionais. O Fogão Gaúcho também é conhecido por realizar o Kerbfest, tradicional festa cultivada por alemães.
Na segunda-feira, 16, alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Rio Branco, da localidade de Saraiva, realizaram apresentações artísticas para celebrar a Semana Farroupilha e o bicentenário da imigração alemã. Em uma iniciativa dos professores, a ideia foi destacar as duas identidades culturais em um único evento.
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Entre as apresentações que chamaram a atenção da comunidade escolar estavam as canções Céu, Sol, Sul, Terra e Cor e Canto Alegretense entoadas em língua alemã por alunos do 6º, 7º e 8º anos. As letras das duas músicas foram traduzidas para o alemão e cantadas pelos alunos.
A coordenadora da 5ª Região Tradicionalista (5a RT), Marisa Rossa, afirma que a mescla cultural é percebida em CTGs dos 13 municípios de abrangência, como Amaral Ferrador e Encruzilhada do Sul, onde as tradições portuguesa e polonesa são marcantes. “Em Pantano Grande e Rio Pardo, essa influência diminuiu. Em Santa Cruz, Vera Cruz, Passo do Sobrado e Candelária, a cultura alemã se torna mais evidente.”
A coordenadora ressalta que essa convivência cultural é tão natural e integrada ao cotidiano que muitas vezes é difícil distinguir as particularidades de cada etnia. “Independentemente de estarmos participando de uma entidade tradicionalista ou não, as influências culturais nos acompanham diariamente, refletindo-se na culinária, músicas, danças e na forma de falar.”
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Marisa destaca que algumas apresentações de CTGs têm incorporado temáticas germânicas, promovendo um processo de união entre as culturas. “Estamos começando a perceber o potencial do folclore germânico dentro da cultura gaúcha. É um processo natural de exploração das raízes que temos na região”, comenta.
No entanto, ela observa que, apesar da diversidade, não há uma entidade específica que trabalhe a cultura alemã como referência. “A essência da cultura gaúcha é um todo. Não existem duas culturas, mas uma única: o povo rio-grandense, formado por várias influências”, frisa a coordenadora.
Apesar da participação da cultura alemã em alguns CTGs, Marisa informa que a 5a RT não fará atividades específicas em comemoração ao bicentenário alemão ou aos 175 anos em Santa Cruz, deixando essa responsabilidade a cada entidade, caso queira explorar o tema.
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