A Colônia Santa Cruz foi povoada, nos primórdios, por famílias vindas da Alemanha. Mas, curiosamente, um dos primeiros personagens de vulto na nova localidade tinha outra nacionalidade: era norte-americano, ainda que muitos o refiram como inglês (talvez porque se expressasse também nessa língua, ou porque sua família tivesse raízes na Inglaterra).
Fosse como fosse, Wilhelm Lewis, ou Guilherme Lewis, como é citado, com o prenome aportuguesado, acabou por se tornar um cidadão que, sem dúvida, todos na colônia conheciam. A começar pelo fato de que era sua a primeira casa erguida no núcleo urbano do povoado que se tornaria a cidade de Santa Cruz, na esquina das ruas Marechal Floriano e Ramiro Barcelos, no local em que hoje se encontra a agência do Banco Santander.
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E foi ele o encarregado de construir a primeira igreja católica da povoação. Além disso, Lewis era casado com dona Carlota, que nomeia bairro da região sul do perímetro urbano.
Um inglês em meio aos alemães de uma nova colônia
Não se tem informações muito efetivas de como, quando ou por que um cidadão de ascendência norte-americana, Wilhelm Lewis, veio parar na Colônia Santa Cruz, em meados do século 19, e quando a nova localidade começara a ser implantada. Mas ele de imediato se tornou uma figura de referência, a ponto de ser citado por quase todos os viajantes e autoridades que visitavam a povoação. Mais: a ele recorreriam colonos e também todos aqueles que vinham de fora, para as mais diferentes demandas.
Ao que tudo indica, o que determinou a vinda de Lewis à região foi seu casamento com uma filha do general Manoel Pedroso de Albuquerque, dono da Fazenda São João da Serra, que começava em Rincão del Rey, a meio caminho para quem vinha de Rio Pardo até a Colônia Santa Cruz. Alcançava até o atual espaço urbano da cidade, incluindo áreas como as de Linha São João da Serra, Cerro Alegre Alto e Esmeralda, até as margens do Rio Pardinho.
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O nome da esposa de Lewis era Carlota Leopoldina de Albuquerque, e ela acabou por herdar boa patrimônio dos pais. É em homenagem a ela que, hoje, tem-se o Bairro Dona Carlota, na zona Sul do perímetro urbano.
Quem reuniu essas informações foi o jornalista José Augusto Borowsky, que dedicou espaços de sua seção “Memória”, nas edições da Gazeta do Sul das segundas-feiras, a esse casal. A referência mais recorrente a Wilhelm é de que seria cidadão de origem inglesa. Mas o santa-cruzense Aidir Parizzi Júnior, colaborador da Gazeta do Sul, na qual assina a seção “Pelo Mundo” no Magazine, o suplemento de final de semana, localizou mais dados sobre o personagem, em consulta aos arquivos Family Search, o banco de dados dos mórmons.
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Por essa fonte, o nome completo dele seria William Lewis Green (e não Wilhelm, como foi grafado no Brasil). Teria nascido em 1812 em Eau Claire, no estado americano de Wisconsin, próximo à fronteira com Minnesota, no chamado Meio-Oeste dos EUA. Ao que consta, o pai de William teria nascido em Nova Iorque, em torno de 1770, quando os EUA ainda eram colônia inglesa, e talvez por essa razão o filho também tivesse cidadania britânica. A transferência da família para o Brasil teria se dado logo após a independência, em 1822, mas como veio parar no Rio Grande do Sul (e, mais ainda, em Santa Cruz) é cercado de muitos mistérios.
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O que se salienta é que acabou por se casar com Carlota, filha de Manoel Pedroso de Albuquerque (1794-1849) e de Mafalda Sinforosa de Figueiredo Mena Barreto (1798-1861). E, como Borowsky referiu em sua coluna “Memória”, nem sobre Carlota há muitas informações oficiais. Ela teria nascido em 17 de novembro de 1820, em Rio Pardo. Por suposto, com a morte do pai, ela herdou a propriedade, que teria sido uma sesmaria doada pela Coroa portuguesa, e que então passou a ser chamada Fazenda Dona Carlota.
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Ela teria sido abastada tanto por parte de pai quanto de mãe, Mafalda Mena Barreto Albuquerque. Wilhelm Lewis teria falecido em 1867 e Carlota, viúva, mudou-se com suas filhas (consta que teve ao menos 11 filhos) para uma casa luxuosa em Porto Alegre. Lá, no final, inclusive teria morrido quase sem bens. De seus filhos com Wilhelm são referidos João Manoel, nascido em 1843; Carlos Pedroso, nascido em 1850; e Adelina Pedroso Lewis.
São, assim, tanto Wilhelm quando dona Carlota, personagens que, se não estavam diretamente relacionados com a imigração alemã, firmaram seu nome para sempre na história da colônia e da Santa Cruz independente. São citados em especial por ter sido deles a primeira casa erguida, em 1855, na povoação que resultaria na futura cidade.
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Edificaram-na no lote 1, da quadra H, que lhes fora concedido naquele ano. Outros pioneiros a morar na vila mencionados são Lucas Antônio Espíndola, José Leite Maciel, Paulo da Cunha, Francisco Gonçalves da Rosa e José Cândido de Oliveira.
Ele foi o construtor da primeira Igreja Católica de Santa Cruz
A relação de Wilhelm Lewis com Santa Cruz se fortaleceu em virtude de empreendimentos aos quais esteve vinculado. É o caso, principalmente, da primeira igreja católica erguida na povoação. Quem recupera esses fatos é o arquiteto e professor Ronaldo Wink, em livro que dedicou à Catedral São João Batista. Menciona que já em dezembro de 1851, quando a colônia havia completado dois anos desde a chegada dos primeiros imigrantes, o governo da Província destinara recursos no orçamento para a execução do templo.
Mas naquele momento nem o traçado da futura povoação fora realizado. Depois, a questão foi resolvida com a destinação de quatro lotes no centro da quadra H (a mesma na qual Lewis construiria a sua casa), em frente à praça de São Pedro, atual Getúlio Vargas, entre as ruas Catalã e Carumbé, atuais Marechal Deodoro e Marechal Floriano. O projeto original do templo era do engenheiro civil Roberto Dietrich, e depois foi modificado pelo capitão de engenheiros Luiz Manoel Martins da Silva. A construção foi arrematada por Lewis, único a participar da licitação, e o contrato foi assinado em Porto Alegre em 20 de julho de 1855.
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Mas o início da obra arrastou-se por dois anos em virtude das modificações que iam sendo propostas pelo governo, a começar pela inclusão de torre central na fachada principal. As mudanças levaram à assinatura de um segundo contrato, em 5 de maio de 1857.
Com isso, Wilhelm não conseguiu cumprir o prazo proposto, e, por sinal, mais alterações foram sendo apresentadas. Um terceiro contrato teve de ser firmado, em 15 de maio de 1860, e por ele foi anulada multa estipulada pelo atraso na obra, que já excedia a um ano, uma vez que inúmeros ajustes haviam sido introduzidos no referido projeto.
Lewis também tivera dificuldades para se abastecer de materiais (ferro, telhas, vidros, tintas etc). A maioria deles vinha de Porto Alegre, em logística complicada. Eram transportados em lanchões pelo Rio Jacuí, até Rio Pardo, e a partir daí em carroças. Para suprir a demanda, Lewis chegou a instalar olaria em sua chácara, nas imediações da povoação. E até as madeiras eram extraídas de sua propriedade, em São João da Serra, descreve Wink.
Com todos esses percalços, a construção foi finalmente concluída em 12 de dezembro de 1861. Porém, nem tudo estava encaminhado. A inauguração efetivamente só ocorreria em 24 de julho de 1863: um aspecto que motivou a demora foi o fato de ser difícil localizar, na região, um padre que falasse alemão, a língua com a qual se comunicavam e que compreendiam praticamente todos os moradores na colônia naquele momento. Por tal fator, a paróquia ficou vaga por um ano e meio.
O contratempo foi resolvido com a nomeação do padre jesuíta José Stür, oriundo da Alemanha, como comenta Wink. Ele permaneceu na função entre junho de 1863 e março de 1870, como também apontara o professor e historiador Hardy Elmiro Martin. A igreja construída por Lewis foi dedicada ao padroeiro da povoação, São João Batista.
Caracterizava-se, na descrição de Wink, “por sua volumetria despojada e de inspiração neoclássica, possuindo fachada simétrica, encimada por frontão triangular, torre sineira e aberturas em arco pleno”. Seu interior contava com altares, mor e laterais, entalhados em madeira, sendo a pintura artística, recobrindo o forro e as paredes com motivos florais e geométricos, realizada por José Diogo Lewis, filho do empreiteiro Wilhelm.
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Em registros dos primeiros terrenos da povoação, entre 1855 e 1878 (em pesquisa de Carlos A. Heuser), os terrenos que pertenciam a Wilhelm Lewis mais tarde passaram a pertencer a José Diogo Lewis. Informações do site Projeto Passo Fundo dão conta de que Diogo nasceu em 1844, quando Wilhelm estava com 34 anos e Carlota com 25. Em 1880, Diogo teria sido eleito para o Conselho Municipal de Passo Fundo (remetendo a nova área de atuação dele), e teria tido ao menos três filhos e quatro filhas com Idalina Francisca Mabilde.
Um interlocutor dos viajantes que vinham conhecer a colônia
O norte-americano Wilhelm Lewis Green, bem como sua esposa, dona Carlota, é personagem citado com muita frequência sempre que um visitante de fora da colônia chegava a Santa Cruz. A partir do momento em que, em 1855, a família construiu a primeira casa na futura povoação, em uma das esquinas junto do espaço reservado para a praça central, aquele ambiente passaria a ser uma referência constante.
E assim ocorre nos apontamentos e lembranças deixados pelo médico e viajante alemão Robert Avé-Lallemant, que visitou a colônia em 1858, quando haviam decorrido pouco mais de oito anos desde a chegada dos primeiros imigrantes alemães, ao final de 1849. Lallemant conviveu por vários dias com Lewis. A começar desde o momento de sua saída de Rio Pardo, onde chegara em viagem de barco pelo Rio Jacuí, a partir de Porto Alegre. Em Rio Pardo, ele encontra Wilhelm Lewis, que será seu companheiro (e guia) no percurso a cavalo até a colônia alemã.
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A descrição da viagem de ambos pelos campos, em áreas quase desabitadas, é vívida, e pode-se ter ideia das sensações ou impressões que Lallemant colhe no trajeto, à medida que avançam em direção ao sopé da Serra Geral, que já podem divisar no horizonte. O viajante também comenta as conversas com o companheiro de andanças pela região, as pessoas com as quais se deparam no caminho, a travessia de arroios e as paradas que fizeram no percurso.
Quando finalmente se aproximam do chamado Fachinal, a área na qual haviam sido demarcados as primeiras ruas, as quadras e os lotes da povoação, o fazem no sentido oeste-leste, na subida que hoje corresponde à Rua Júlio de Castilhos, então Rua do Império, e projetada para ser a principal via de acesso ao povoado.
Assim, chegam a cavalo à esquina da praça, ainda um descampado, e ingressam à direita, até a casa de Lewis. É justamente com a família que Lallemant se hospedará nos dias em que ficará na colônia. Chegam cansados, num final de tarde. O viajante alemão será convidado a conhecer uma espécie de bolicho, ou venda, ali próximo, e na qual se depara com figuras estranhas em meio a uma espécie de bailanta.
Em suas descrições, menciona o contato com os familiares de Wilhelm. Também relata o forte impacto que tivera sobre ele a cena, no amanhecer do dia seguinte, quando tem diante de si a praça ainda tomada por vegetação, algumas primeiras casas no entorno, a igreja em construção, e a floresta exuberante em todas as direções que a vista alcança.
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