175 anos da imigração alemã em Santa Cruz: o valor da presença luterana no Brasil
Com a chegada dos imigrantes alemães, na primeira metade do século 19, o Brasil conheceu em maior profundidade uma nova maneira de professar a fé: com os colonos veio a religião protestante. Boa parte dos pioneiros eram luteranos: seguiam os preceitos do monge agostiniano Martinho Lutero, o qual, em 1517, revolucionou a forma como o ser humano concebia sua relação com o divino. Ao traduzir a Bíblia do latim para o alemão, ele propiciou que cada pessoa pudesse ler, por conta própria, a palavra de Deus, e não dependesse apenas do que dizia o clero.
Os luteranos desde o princípio também marcaram presença em Santa Cruz do Sul, onde se destacaram pela autonomia e união na hora de construir seus templos e escolas, e ainda de zelar pela infraestrutura básica. É o que evidenciou Wilhelm Wachholz, professor de Teologia da Faculdades EST, de São Leopoldo, em palestra na igreja da Comunidade da IECLB centro, na noite da última terça-feira, 1º. Wachholz foi pastor em Santa Cruz entre 1991 e 1995.
O espírito comunitário e a cooperação no centro das atenções
Natural de Taió, no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, de família de agricultores (o pai era também caminhoneiro) que tiveram cinco filhos, o professor e teólogo Wilhelm Wachholz reúne, da prática e dos estudos, vastos conhecimentos sobre o luteranismo e sobre suas influências na sociedade, seja em âmbito de Brasil, seja em realidade global. Em sua caminhada de formação e atuação, como pastor e professor na graduação e na pós-graduação, compartilhou em livros o seu olhar sobre esse contexto.
E foi essa mesma bagagem que trouxe na última terça-feira a Santa Cruz do Sul, para uma palestra à noite no templo da comunidade do centro da Igreja Evangélica da Igreja de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), na Rua Venâncio Aires. A base de sua reflexão também está em artigos do livro Presença luterana no Brasil: história e testemunho, que elaborou em parceria com outros dois expoentes dos estudos sobre história, imigração e religiosidade, os também professores Martin Norberto Dreher e Osmar Luiz Witt. Com 365 páginas, a obra acaba de ser lançada pela editora Sinodal, de São Leopoldo, cidade na qual Wachholz está radicado. Na ocasião, exemplares estiveram à venda, e ele autografou.
A visita a Santa Cruz propiciou um reencontro de Wachholz com a igreja e a comunidade na qual atuou, há 30 anos. Recém-graduado em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST), de São Leopoldo, que motivara a sua transferência de Santa Catarina ao Rio Grande do Sul, para frequentá-la, Wilhelm iniciou sua trajetória como pastor da IECLB centro em Santa Cruz. Por isso, sua palestra foi também marcada por muita emoção, detalhando para os membros da congregação presentes algumas de suas reflexões sobre a condição luterana.
Da atuação como pastor, Wachholz seguiu nos estudos para dar continuidade a sua formação, no Brasil e também na Alemanha. Ele é doutor em Teologia, nas áreas de Teologia e História, e desde 2002 professor de Teologia. Mais do que isso: entre 2005 e 2022, foi o reitor da Faculdades EST, bem como coordenador do Programa de Pós-Gradução em Teologia, primeiro entre 2007 e 2014 e novamente desde 2023. Essa trajetória o coloca como uma das mais importantes referências sobre teologia, em especial a associada ao luteranismo, em realidade de Brasil, condição que ostenta ao lado de pares como, entre outros, justamente o professor Martin Dreher.
Na vinda a Santa Cruz, e antes do início de sua palestra, Wachholz concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul. Nela reflete sobre algumas das características centrais que, desde o princípio, moveram os luteranos em todo o Sul do Brasil.
Não foi diferente em Santa Cruz, onde, desde o começo da colônia, em 1849, imprimiram um modo de ser e de se comportar que valorizava sobremaneira o espírito comunitário, a união de forças e o associativismo, isso em todas as áreas. Os efeitos e os reflexos desse modo de ser em comunidade podem ser medidos e avaliados ainda nos dias de hoje.
A memória dos obreiros de Barmen que atuaram na região
Entre as produções intelectuais do teólogo e professor Wilhelm Wachholz, uma em especial deve motivar total interesse de parte dos santa-cruzenses. É “Atravessem e ajudem-nos”: a atuação da “Sociedade Evangélica de Barmen” e de seus obreiros e obreiras enviados ao Rio Grande do Sul (1864-1890), publicada em 2003 pela Escola Superior de Teologia (EST) e pela Editora Sinodal, ambas de São Leopoldo.
Trata-se da transformação em livro da tese de doutoramento do autor, que, como refere, foi defendida em fevereiro de 2000 na Escola Superior de Teologia. Como salienta Joachim H. Fischer, na apresentação, a atuação da sociedade de Barmen, constituída na cidade de mesmo nome, na Alemanha, “foi de importância fundamental para as comunidades evangélicas de imigrantes alemães e de seus descendentes no Rio Grande do Sul”.
Ela atuou tanto na segunda metade do século 19 quanto no começo do século 20, formando obreiros que, posteriormente, se deslocariam ao Sul do Brasil para trabalharem como pastores luteranos em localidades formadas por imigrantes germânicos e descendentes. Eles igualmente vieram para Santa Cruz do Sul e várias outras comunidades da região central do Estado, a exemplo da Colônia Santo Ângelo, atual Agudo.
Ao longo de décadas, ninguém tinha notícia do paradeiro do acervo documental da Sociedade de Barmen, ou se ainda existia. Até ser localizado no Arquivo Evangélico Central em Berlim. E foi graças a essa redescoberta que Wachholz, na Alemanha, pôde manusear esse valioso material.
Além de recuperar a história e ação da própria sociedade, Wachholz enumera os obreiros que efetivamente atuaram no Rio Grande do Sul. E nessa lista os santa-cruzenses encontrarão nomes que fazem parte da história da igreja local e regional, por terem dado assistência e apoio aos imigrantes e aos descendentes em uma época ainda de muito isolamento (em relação a centros populacionais e a obras de infraestrutura). Entre eles estão os pastores Bergfried, Christian Smidt, Falk, Haetinger, Hildebrand, Kleikamp, Sudhaus, Schlegtendal, Precht, Klasing, Lechler, Jaeger, Hemsdorf, Funke e muitos outros, que se fixaram na memória.
Entrevista – Wilhelm Wachholz, teólogo e professor de Teologia e História da Faculdades EST, de São Leopoldo
“O luteranismo está ligado a uma mudança da sociedade brasileira”
Gazeta – Como o senhor avalia a presença luterana no Brasil nos dias atuais? A origem do luteranismo no Brasil está muito ligada a uma mudança da sociedade brasileira. E a marca que a gente vai ter antes da chegada desses imigrantes ao País vai ser, por assim dizer, uma sociedade de senhores de escravos. Com a chegada desses imigrantes, inaugura-se um novo modelo; a gente poderia chamar isso hoje de uma classe média que se interpõe na sociedade brasileira. O fato mais importante é que esses contingentes de imigrantes vão trazer um modelo de sociedade baseado no associativismo. E o associativismo tem um espectro muito largo, não só no âmbito religioso e cultural, mas também uma dimensão econômica. Essas pessoas eram geralmente, e em sua grande maioria, desassistidas pelo governo brasileiro no Brasil Império. Nesse contexto, era necessário que esses contingentes se reunissem e se ajudassem mutuamente. Então, a gente tem aí uma vida de solidariedade. Esse é um aspecto que eu quero ressaltar: a vivência comunitária, associativa, e como isso também pode ser percebido na própria dimensão das comunidades religiosas. A construção de templos, por exemplo, resulta de uma vida associativa. Esse aspecto, marca dessa identidade luterana, é uma característica não só do povo, mas da igreja. Por isso, dizemos que a IECLB é uma igreja de comunidades.
Esse aspecto segue plenamente atual? Sim! Quero fazer uma referência especialmente no contexto bem atual, pós-moderno, onde a gente tem a exacerbação do indivíduo. Considerando-se a passagem dos 200 anos de imigração alemã no Brasil, agora em 2024, esse passado pode nos inspirar e fortalecer na relação comunitária. Temos, portanto, um aspecto bastante significativo a ser revisitado neste ano em que a gente celebra o bicentenário, e eu acho que isso pode nos inspirar para a caminhada futura.
Em outros termos, se se resgatar esse espírito comunitário, há melhores possibilidades de resolver certas demandas hoje um tanto a descoberto, seria isso? Exatamente. Como estamos em um contexto religioso e de identidade luterana, e a minha caminhada ocorre também no âmbito da teologia, quero fazer um link à teologia de Martinho Lutero, especialmente quando nós lemos a “Preleção sobre Gênesis” de Lutero, que é a sua grande última obra da vida, escrita entre 1535 e 1545. Na “Preleção sobre Gênesis”, Lutero insiste muitas vezes na palavra “diabo”. “Diabo” vem do grego “Diaballein”; e “Diaballein” tem a conotação, como verbo, de separar, afastar, desunir. Então, acho que esse é um aspecto a ser resgatado em termos de identidade luterana, a partir dessa compreensão de Lutero. Porque a gente vive uma exacerbação do indivíduo também no âmbito religioso, e acho que o resgate de fato dessa vida solidária, comunitária, associativa, torna-se fundamental até para a própria existência.
Tem-se os binômios união/desunião, e ao mesmo tempo comunhão/isolamento, ou solidão, que hoje são marcas tão fortes no mundo contemporâneo, de pessoas solitárias e afastadas até por tecnologias… Lutero faz uma relação muito interessante com a narrativa de Gênesis a respeito de Adão e Eva. Ele chama isso de pecado original, e diz assim: Adão foi passear no mato porque achou que ia conseguir algo melhor. Deus vai atrás dele e diz: “Aonde você está indo?” Ele se assusta e diz: “Eu estou nu!” Deus diz: “Bom, mas qual é o problema? O problema é que tu não confiastes em mim e estás buscando outra coisa. E assim tu abandonastes a mim e a confiança em mim.” Continua a narrativa de Lutero e Adão diz: “É verdade, tu me criaste nu. Mas o problema não sou eu, o problema é a Eva, que tu colocastes na minha vida.” Ou seja, ele acusa Eva e acusa Deus. Transfere a culpa. E aí Lutero diz: “Todo pecado quer parecer justiça”. O recado que fora dado a Adão e Eva em relação à maçã era: se tu comeres desse fruto, vais morrer. “Tudo isso tem a ver com o diabo”, diz Lutero: o diabo que chega, tenta Adão e Eva e diz ‘olha, talvez não vamos morrer”.
Gera dúvida… Aí está o aspecto. Lutero diz: “Ele semeia a dúvida, e a dúvida rompe as relações de confiança.” Nesse nosso mundo, há guerras…. As guerras são relações rompidas, em que a gente não confia no outro. Então vai lá e faz guerra, porque a gente quer se antecipar, porque o outro pode fazer coisa pior. Esse aspecto é fundamental no mundo de hoje e também na sociedade. Porque em nossas relações somos levados num desespero da autossalvação, que produz o individualismo de forma tão exacerbada que não nos damos conta de que vamos de fato morrer sozinhos, isolados. E que aqui há a necessidade de fato de a gente re-buscar a questão comunitária, a humanidade, o “Oikos”. Lutero entende toda a questão da economia a partir do conceito de “oikonomia”, a ideia da casa comum. Entende economia como produção e reprodução de vida. Então, só pode haver vida se efetivamente há uma economia, no sentido global, coletivo, se essa economia está a serviço de todos, e não é privatizada, pois aí ela resulta naquilo que Lutero chama de idolatria.
Ser luterano é ser cooperativo em tudo na vida? Por essência, o luterano é cooperativo? Se vamos à história do luteranismo, voltando a isso, essa igreja aqui em que estamos, a da IECLB Centro, chamada de igreja da memória por ser a primeira na cidade, existe porque pessoas se reuniram em comunidade e a construíram para celebrar seus cultos, cultivar a espiritualidade como o faziam em sua terra natal. E o mesmo a gente pode dizer em relação às escolas. Elas eram comunitárias. No Sul do Brasil, nós tivemos mais de 1.500 escolas chamadas de comunitárias. Isso sempre num contexto de ausência de políticas educacionais do Império brasileiro. O grande golpe vai acontecer depois, durante a Segunda Guerra Mundial, com as políticas de nacionalização de Getúlio Vargas, de forma que dessas bem mais de mil escolas hoje a gente vai ter ainda pouco mais de 50 em rede sinodal, como escolas que estão na ativa. Agora, a gente precisa entender de fato: escolas são uma das marcas do luteranismo no Brasil; o ser comunidade, o pastor, o professor… Claro que esses imigrantes, numa situação de evidente isolamento, cultivavam muito sua própria cultura, talvez até num sentido bastante endógino. Mas também a gente precisa considerar, por exemplo, no âmbito da educação, iniciativas que eram feitas; eles tinham uma educação encarnada no Brasil. Wilhelm Rotermund, em São Leopoldo, na sua gráfica, publicou uma enormidade de livros didáticos. Tinha a convicção absoluta de que as crianças não deviam estudar história da Alemanha, geografia da Alemanha, nem matemática usando objetos alemães. Ainda que fosse em língua alemã, os objetos da matemática, a geografia, a história deviam ser encarnadas na realidade brasileira. É uma vivência de comunidade, uma necessidade. Ao mesmo tempo, essas comunidades têm de se reestruturar, porque são populações que vêm de diferentes lugares. De repente se encontram em Santa Cruz e aqui têm de se tornar uma comunidade, com alguma dificuldade… A gente traz hinário, catecismo, Bíblia; mas qual hinário vamos usar aqui? A gente vai cantar do pomerano, do de Württemberg? Foi preciso reaprender a ser comunidade. Acho que esse é um desafio muito significativo.
O luterano é sempre muito leitor, até pelo fato de Lutero ter traduzido a Bíblia… A gente de fato precisa considerar fundamentalmente o fato de Lutero ter traduzido a Bíblia e tê-la colocado à disposição em língua alemã para que o povo pudesse ler. Outro aspecto extremamente significativo é que na Idade Média a comunidade se dividia entre clero e leigos. Sendo que a vida clerical, monástica, era tida como um nível superior também em termos de garantia da salvação. Lutero desfaz esse maniqueísmo, essa dicotomia entre o sagrado e o profano, e estabelece, principalmente a partir da sua interpretação de Gênesis, a relação com Deus no âmbito da igreja, no âmbito da política e no âmbito da economia. Claro que Lutero tinha outra interpretação de política, economia e igreja. Dizia assim: nós não somos somente cooperadores com Deus no âmbito da Igreja, mas somos cooperadores com Deus, por exemplo, quando somos prefeito, professor, sapateiro. Insiste muito nessa questão de que Deus nos vocaciona. A palavra “Beruf”, vocação, vem de “rufen”, chamar. Gosto muito da palavra pro-vocação, porque a gente é chamado para; é um chamamento, para fora, chamado para fora. Na compreensão de Lutero, “Beruf”, essa vocação, é esse chamado para fora para cooperar em todos os âmbitos da sociedade, em todos os âmbitos da vida. É uma marca que a gente também pode considerar no âmbito do luteranismo para a sociedade brasileira. Ele não fala somente de uma dicotomia, no âmbito religioso e no âmbito leigo, mas de que, como cooperação com Deus, nós seríamos vocacionados em todas essas esferas.
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