Era por volta de 23h30 do dia 10 de abril de 2006, quando o telefone do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), em Porto Alegre, tocou. A ligação era de Santa Cruz do Sul. Naquele momento, os investigadores da Delegacia de Capturas (Decap) tomavam ciência de um crime que havia sido cometido momentos antes no município. Mas não era um delito qualquer. Às 22h45, o criminoso mais procurado do Rio Grande do Sul na época havia realizado um dos assaltos mais ousados da crônica policial gaúcha.
“Quando isso aconteceu, sabíamos que era com ele.” Ele, a quem se refere o então chefe da Decap, comissário Mauro Alves da Silva, era José Carlos dos Santos, o Seco. O candelariense de 26 anos era conhecido pelas ações ousadas, envolvendo explosivos e armamento pesado. Seu alvo preferido eram carros-fortes; no entanto, naquela noite, acompanhado de seu bando, ele arremessou um caminhão-guincho, roubado minutos antes do pátio da Santa Cruz Rodovias, na Rua São José, contra o prédio da transportadora de valores Proforte, na Rua Júlio de Castilhos. O impacto abriu um buraco na parede.
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Os criminosos roubaram R$ 3,9 milhões, não sem antes aterrorizar os funcionários e abrir fogo contra os policiais militares que foram ao local tentar conter o ataque. Tiros de bala traçante iluminavam a via, que mais parecia um campo de guerra. O capitão da Brigada Militar André Sebastião dos Santos foi morto com um disparo de fuzil 762 na cabeça. O bando que apavorava o Estado havia feito novas vítimas naquele que foi considerado o maior roubo do Rio Grande do Sul. A história da caçada a Seco e seus comparsas será contada na quarta reportagem da série Casos do Arquivo, sob a ótica do policial que colocou as algemas no homem mais procurado do Estado até então – também conhecido no interior de Candelária como Zé das Retro.
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Embora não muito distante, a primeira metade deste século ainda imprimia uma dificuldade grande para os policiais quando o objetivo era identificar visualmente um criminoso. Pouquíssimas fotos de identidades ou carteiras de motoristas, nos sistemas, davam uma ideia de como um suspeito era, sobretudo se ele ainda não havia sido detido ou cumprido pena no presídio.
Em uma época na qual as fotos não eram compartilhadas de forma instantânea como hoje, em redes sociais, ou mesmo enviadas por aplicativos de mensagens, a aparência de Seco era bastante vaga. “Ninguém conhecia ele pessoalmente. Nunca havia sido preso. O que tínhamos era tão somente uma foto de uma carteira de motorista. Tínhamos dificuldade porque poderíamos cruzar perto dele e não saber quem era”, afirmou o ex-comissário Mauro Alves da Silva, de 64 anos. Mas ele estava no radar da Polícia Civil. “Era um excelente operador de retroescavadeira na região de Rebentona, em Candelária, onde nasceu. Bom de braço, demonstrava habilidade como operador de máquina. Quando ele passou a integrar uma quadrilha, por volta de 2002, era o integrante que tinha a função de dirigir o caminhão que batia nos carros-fortes”, explicou Mauro.
Tempos depois, a polícia descobriria que a técnica usada pelo candelariense consistia em enrolar cobertores e colchonetes no cinto de segurança e no entorno da cabine, para reduzir o impacto e se jogar em um ataque quase suicida. “Ele sabia como bater de forma que o caminhão ficasse virado de uma forma estratégica. A função dele era essa, enquanto os outros encarregavam-se das abordagens e explosivos.”
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Atentas, a Polícia Civil e a Brigada Militar monitoravam os quadrilheiros. Os líderes foram presos ou mortos. “Foi nesse momento que o Seco começou a aparecer na forma de líder, arregimentando outros elementos e os incorporando ao bando”, diz Mauro. E a ascensão foi rápida.
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Seco e os comparsas foram responsáveis por diversos ataques na região. Em abril de 2003, assaltantes jogaram um caminhão de frente contra um carro-forte em Venâncio Aires. Depois, enquanto os guardas tentavam se recuperar do impacto, os criminosos abriram fogo, utilizando fuzis. Um vigilante, morador de Santa Cruz, morreu atingido por disparos e outros três ficaram feridos. Foi a primeira grande ação atribuída ao bando de Seco.
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Em janeiro do ano seguinte, o plano de dinamitar uma ponte em Candelária, no momento em que um carro-forte estivesse passando, foi frustrado por um agricultor. Ele viu as bananas de dinamite instaladas no local e avisou a polícia antes que o veículo passasse. Ao longo de 2005, o bando de Seco cometeu diversos crimes, dentre os quais um novamente em sua cidade natal.
Em 6 de junho, a quadrilha atravessou um caminhão frigorífico roubado na ponte sobre o Rio Pardo para assaltar dois carros-fortes que estavam passando no local. Dois criminosos acabaram morrendo, e os outros fugiram após serem alvejados pelos guardas. Mas se levar a pior nesses casos poderia indicar uma queda nas ações cinematográficas de Seco, um novo ataque com proporções imensas estava sendo programado para 2006, o que o fez buscar um comparsa de outro Estado.
Tão logo observaram as ações do bando de Seco em Santa Cruz, os agentes do Deic identificaram quais seriam seus passos após roubar quase R$ 4 milhões. “Rapidamente, descobrimos que haviam se deslocado para a Grande Porto Alegre. Poderiam estar em algum sítio da região de Águas Claras, uma grande área rural de Viamão. Montamos um cerco nas imediações e ficamos monitorando”, contou Alves.
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Os criminosos perceberam a presença das forças de segurança e não saíram da toca ao longo dos dias 11 e 12 de abril. Àquela altura, eram 80 policiais militares e 50 policiais civis na região. “Eles notaram que estávamos pelo entorno, até que nos retiramos. Aí começaram a se movimentar novamente. Conseguíamos algumas informações por meio de telefones grampeados, mas eles eram muito cuidadosos no que falavam”, explicou Mauro Alves.
Nesse momento, o chefe da Delegacia de Capturas identificou uma movimentação diferente na central de monitoramento dos telefones grampeados. Sozinho, Seco havia deixado o esconderijo em um veículo prata, roubado em Vacaria dias antes. Foi quando Mauro e uma equipe deslocaram-se à BR-386 pela estrada Tabaí-Canoas, até a localidade de Bom Jardim, distrito de Paverama, no Vale do Taquari, já por volta de 2h30 do dia 13 de abril.
“Sabíamos que ele estava com um Audi A3. Gostava muito desse veículo, pois era veloz, com motor turbo. O Posto do Rosinha era um local onde os caminhoneiros paravam para pernoitar. Cheguei devagar e perguntei para um motorista, que estava fazendo um carreteiro junto a um caminhão, se ele não tinha visto um Audi. Quando terminei de perguntar, olhei para o lado da bomba e vi o carro. Só deu tempo de falar ‘tá lá ele’”.
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Após prender um dos principais comparsas de Seco, um homem conhecido pelo apelido de Milico, a Polícia Civil sabia que estava apertando o cerco contra aquele que era considerado o procurado número 1 no Estado. “A prisão do Milico, que fizemos em Canoas, deixou ele ‘desasado’. Foi aí que ele saiu daqui e foi ao Paraná para chamar um sujeito com o apelido de Gordo, um cara barra-pesada. Voltaram pra cá e sabíamos que estavam pela região do Vale do Rio Pardo, mas não sabíamos onde, nem o que iriam fazer”, contou Mauro Alves.
Tão logo o assalto à Proforte foi concluído, rapidamente os agentes do Deic deslocaram-se para Santa Cruz do Sul. “Identificamos o modus operandi dele. Bem armado, possuía fuzil de munição traçante, no qual o tiro sai luminoso e se enxerga para onde está indo o disparo. São armas que ele conseguiu das forças armadas da Argentina, usadas na Guerra das Malvinas, e se perderam na mão dos criminosos.”
Uma operação montada semanas antes, chamada de Lince – em referência ao animal rápido e esguio, com olhar que enxerga além do alcance –, tinha por objetivo capturar o bando, sobretudo Seco, e o crime cometido no município era o rastro que faltava para chegar mais perto do objetivo. “Ele era nosso alvo número 1, dentro das prioridades. Até então, cada delegacia do Deic trabalhava por si. Foi quando resolvemos juntar as delegacias de roubo a banco, de repressão a carga e de capturas e formamos a Operação Lince.”
Os quatro agentes do Deic, Mauro Alves da Silva, Carlos Eugênio da Motta, Henrique Almeida Costa e Clairton Félix Segatto, divididos em dois carros sem emblemas – um Astra com rodas esportivas e um Vectra – encontraram Seco no Posto Rosinha, à margem da BR-386. Havia marcado o ponto para encontrar seu comparsa, o Gordo. Após encher o tanque, o quadrilheiro pagou com uma cédula de R$ 100,00 e pediu que o frentista lavasse o automóvel, coberto de terra.
O funcionário já estava concluindo o serviço quando os policiais tentaram fazer a abordagem. Seco percebeu a movimentação. Ele e seu comparsa instantaneamente dispararam contra os policiais, que revidaram. Na tentativa de fuga, o quadrilheiro deu marcha à ré no Audi e conseguiu desviar do carro dirigido por Mauro Alves, mas acabou se chocando contra um Mercedes-Benz, estacionado nas proximidades.
“Para a nossa sorte e azar deles, na hora da ré, bateu no caminhão e a lataria ficou presa. Quando fomos fazer a aproximação para prender, os dois nos encheram de tiros. O Gordo descarregou o AK-47 na gente, depois pegou a pistola, assim como o Seco. E ali foi o embate. Eles disparando de dentro do carro, através do para-brisa, que nem se deram ao trabalho de abrir, e nós entrincheirados nas viaturas. Meu colega Félix levou um tiro no dedo. Foi um tempo curto, mas uma eternidade para nós. Graças a Deus, nosso anjo da guarda estava de plantão.”
Em determinado momento, no meio do tiroteio, os policiais e os criminosos pararam de atirar para recarregar as armas. “Foi então que o Gordo saiu do carro correndo, em direção à estrada, e dois colegas foram atrás dele. Eu e mais um outro ficamos, e o Seco saiu se arrastando por baixo da porta do carro”, disse Mauro. Aqueles eram os últimos momentos de liberdade do procurado número 1.
Com um grave ferimento na perna e outro nas costas, o candelariense de 26 anos não abria mão de atirar contra Alves. “Ele foi que nem cobra, se arrastando em direção à estrada. Consegui remuniciar a minha pistola e saí ao encalço. Cheguei perto dele junto a um canteiro; foi quando dei a voz de prisão. Ele olhou para mim e falou: ‘Meu nome é Rogério’”.
O objetivo do criminoso era confundir o agente. Afinal de contas, sabia que não havia uma imagem definida do seu rosto. E a escuridão no local era total. “A PRF estava na volta com um holofote na mão, e ajudou a identificar ele. Nós não sabíamos exatamente como era. Seco era mais conhecido pelos atos do que pelo aspecto físico, além da voz, em virtude dos telefones grampeados.”
Com a certeza de que havia capturado o maior assaltante de bancos do Rio Grande do Sul, Mauro Alves reafirmou a voz de prisão. “Eu disse, ‘tu não é o Rogério, tu é o José Carlos dos Santos, o Seco, e está preso’. Coloquei a algema nele, e dali para a frente não falou mais nada, se fez de mudo.” No outro lado da estrada, os colegas do Deic também haviam capturado o Gordo. Uma ambulância havia sido despachada pela SulVias para atender os feridos. “Colocamos ele ali e seguimos rumo a Porto Alegre”, ressaltou Mauro Alves.
Diversas armas e munições foram encontradas no veículo que Seco dirigia, mas não havia qualquer sinal do dinheiro roubado dias antes em Santa Cruz do Sul. Muito se pergunta para onde teriam ido os milhões da Proforte e outros que o quadrilheiro havia roubado anteriormente. A verdade é que até hoje nunca se soube onde foi parar esse dinheiro, ainda que existam muitas hipóteses, que já viraram até lendas, sobre os possíveis locais onde ele teria guardado o valor.
“Tem muitas histórias de que ele havia enterrado o dinheiro em vários locais espalhados para o lado de Santa Cruz, ou mesmo Viamão. Nunca revelou nada sobre isso. Mas o fato é que o nosso objetivo era a prisão dele, pois estava aterrorizando o Estado com seus crimes violentos”, disse Mauro Alves. À época com 49 anos, o ex-comissário relembra a comemoração que ocorreu em toda a polícia gaúcha com a prisão de Seco.
“Era algo que nos afligia há tempo, nosso objetivo primeiro, pois ele apavorava a comunidade com tanta violência. Era questão de honra prendê-lo. Unimos nossas forças e trabalhamos muito para isso. Era uma cobrança grande, e conseguimos tirar um peso dos nosso ombros”, disse Alves. “Naquela noite, conseguimos prendê-lo sem termos baixas na equipe, pois ele já havia dito em alguns momentos que, se fosse ser preso, não iria aceitar; ele iria morrer e levar alguns de nós com ele. Foi a maior prisão da história da polícia gaúcha, pela magnitude, pela repercussão, pelo serviço de investigação, pela inteligência operacional”, complementou.
Mauro Alves da Silva relembrou ainda o acaso que foi participar da Operação Lince. Ele já havia se aposentado anos antes, em 2001. “Em uma situação jurídica, tive que voltar em 2004. Me dediquei à investigação daquela quadrilha de que o Seco participava. Voltei para encaminhar a prisão dele.” Em 2015, Alves se aposentou de vez. “Posso dizer agora que o dever foi cumprido.”
Atual vice-governador do Rio Grande do Sul, Ranolfo Vieira Júnior era diretor do Deic à época e também comemorou a prisão. “A procura por Seco durou mais de três anos. Da primeira formação da quadrilha, só faltava ele.” Seco chegou a cumprir pena na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc), mas foi levado à Penitenciária Federal de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, na megaoperação Pulso Firme, em 2017, que transferiu criminosos perigosos do Estado para prisões federais. Em agosto de 2018, houve um movimento para trazê-lo novamente ao Estado, mas, segundo a Susepe, ele permanece em Mato Grosso do Sul. Embora Seco tenha mais de 200 anos de pena para cumprir, de várias condenações, a legislação brasileira não permite que ele fique preso por mais de 30 anos em regime fechado. Já tendo cumprido 15, o quadrilheiro poderá ser liberado em 2036, quando terá 56 anos.
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