Ele muito pouco sabia dos acontecimentos em Paris. Naquele ano de 1968 espocavam críticas contundentes ao modelo educacional, ao autoritarismo e aos conceitos estabelecidos. Os protestos eram violentamente reprimidos pelas forças policiais parisienses. Da repressão à expansão libertária. Pacíficas irreverências hippies, somadas às passeatas e manifestações a favor do respeito à natureza, iriam modificar o mundo. Logo, em 1972, aconteceria a
Conferência Mundial do Meio Ambiente de Estocolmo.

Longe de Paris, em Salvador do Sul, uma cidade incrustada nas serranias basálticas gaúchas, o ainda menino de 16 anos experienciaria algo inusitado. Num final de tarde, naqueles momentos em que a melancolia junta o dia com a noite, ele entrou na capela. Ali, genuflexo perante a imagem da Virgem, sentiu o que nunca mais esqueceria. Foi inundado pela percepção do imensamente grandioso conjugado à simplicidade do extremamente ínfimo. Tudo se movia na maior das sínteses, e, como tal, em boa medida, inexprimível.

Anos depois voltou lá. O lugar da estátua de gesso estava vazio. Fora retirada. Acabou encontrando-a na sacristia, com um dos dedos da mão quebrado. Agora, há poucos dias, ao folhear a obra Geographia Elementar, escrita em 1924 por José Theodoro de Souza Lobo (patrono da cadeira 8 da Academia Rio-Grandense de Letras), o já idoso encontrou uma
estampa da Virgem entre as páginas 132 e 133 do compêndio. Entre as mesmas páginas fora colado um mapa que ilustra alguns sistemas locacionais da Europa Physica. De pronto, a síntese se esboçou reavivada. A Europa dos movimentos libertários e ambientalistas se aproximou de Salvador do Sul, onde um menino acessara sensivelmente o amplo e o específico, sem contradição alguma, mas em simbiose revelatória. Revelação que se adensa ao sabermos que o número 133 da página onde se encontra a Virgem, espremida por entre os parágrafos descritivos junto a um
mapa já rasgado, é o mesmo que servira de identificação ao jovem estudante. 133 era seu número para dispensar as roupas usadas na lavanderia e tudo o mais.

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Dirão alguns que se trata de mera coincidência. Que seja. Em nada muda o que se incrustou naquele rapaz desde então. A busca pela síntese nunca mais o abandonaria. Sonha em compreender as minúcias vibratórias infinitesimais da mecânica quântica, ao tempo em que se esmera em imergir profundamente nos adensados “buracos” siderais em amplitudes de relatividade geral. Ao adentrado em idade de hoje não se fazem temer as incertezas da empreitada. Já não importam tanto as relações de causa e efeito, ação e reação, arquétipos e princípios consagrados. As convicções se esfacelam frente ao inusitado natural, esplendoroso em possibilidades multilaterais não hierarquizadas. Incertezas animam, certezas acomodam.

O menino quase ancião, ainda que assim deseje, já nem precisa retornar ao reservado da capela da Virgem do dedo quebrado ou buscar pelo mapa rasgado. Uma experiência intensamente vivida nunca se apaga, apenas se avoluma intuitivamente.

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Heloísa Corrêa

Heloisa Corrêa nasceu em 9 de junho de 1993, em Candelária, no Rio Grande do Sul. Tem formação técnica em magistério e graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Trabalha em redações jornalísticas desde 2013, passando por cargos como estagiária, repórter e coordenadora de redação. Entre 2018 e 2019, teve experiência com Marketing de Conteúdo. Desde 2021, trabalha na Gazeta Grupo de Comunicações, com foco no Portal Gaz. Nessa unidade, desde fevereiro de 2023, atua como editora-executiva.

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